A história da esquerda latino-americana é repleta de pais dos pobres, ex-guerrilheiros, líderes populistas, democratas e ditadores, mas “Pepe” Mujica pairava sobre todos eles com uma característica rara na política. Espécie de versão local de Nelson Mandela, foi praticamente canonizado ainda em vida.
O jeito simplório, a história pessoal de superação e o idealismo poético tornaram o uruguaio a consciência crítica do continente, mesmo para muitos que não se definem como progressistas.
Nada simbolizou melhor essa condição do que suas referências ao autoritarismo do regime venezuelano, num momento em que líderes mais jovens, incluindo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a argentina Cristina Kirchner, tinham pudores de apontar o dedo para o chavismo. “Pode chamar de ditadura”, disse ele, um dos poucos a terem condição de dizer o óbvio.
Para uma geração ainda mais distante da sua, representada pelo chileno Gabriel Boric, por exemplo, era citado como inspiração. Mujica, afinal, era a esquerda romântica que servia de contraponto para o pragmatismo exacerbado de governos progressistas.
Ele não estava livre de contradições, no entanto, como mostra a dificuldade que tinha em estender sua defesa da democracia para o regime cubano. Com Fidel Castro, outro prócer da esquerda do continente, teve uma relação de mesuras e admiração.
Influenciador analógico, Mujica entendia o poder dos simbolismos na construção de sua persona. O Fusca azul velho de guerra, a vida na chácara simples e as roupas mulambentas ajudaram a fixar a imagem do vovô bonachão.
No caso dele, não era, ou não parecia ser, trabalho de marquetagem, tão em voga entre líderes do continente. Nunca foi preciso criar “Pepezinho paz e amor” em laboratório de campanha para suavizar sua imagem. A autenticidade foi outro elemento a lhe dar estatura.
Ele não esteve na primeira fase da “onda vermelha” de líderes continentais. Na política uruguaia, essa prerrogativa coube a Tabaré Vázquez, que o antecedeu (e depois sucedeu).
Mujica, no entanto, foi importante num segundo momento para a esquerda. Seu mandato, de 2010 a 2015, coincide com a saída de Lula do poder e com a crise que derrubaria Dilma Rousseff no Brasil. Assumiu assim o posto de estadista continental mesmo vindo de um país pequeno e periférico.
É em grande medida graças a ele, também, que seu país passou a ser citado como exemplo de civilidade no debate público, mérito que ele divide com seus opositores ideológicos na centro-direita.
Enquanto em locais como Brasil e Argentina (para não falar da Venezuela) a política foi transformada em guerra, o Uruguai se tornou um experimento global de como tratar adversários com respeito.
Mujica, de uma certa forma, representou todas as fases que a esquerda latino-americana viveu no último século. De perseguida, passou a alternativa democrática. Fracassada a opção pela luta armada, percebeu que o caminho para o poder era a urna.
Ao chegar lá, agiu sem revanchismos e mudanças bruscas de rumo, mantendo, por exemplo, a condução moderada da política econômica.
Sua morte ocorre num momento em que a esquerda continental vive novas turbulências.
No Brasil, a popularidade de Lula patina, e sua reeleição é incerta, para dizer o mínimo. Na Argentina, Javier Milei dominou completamente o cenário político. No Chile e na Colômbia, a esquerda parece em fim de ciclo e vive uma disputa fratricida na Bolívia.
Mesmo afastado da política formal, Mujica era uma figura de referência, que representava uma era mais favorável para o progressismo sul-americano. Sua partida simboliza as incertezas que rondam a esquerda neste momento.